quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O sistema chinês no controle das águas

O papel da China no mundo da água suscitou curiosidade. Para esclarecê-lo um pouco, resolvi abordá-lo pelos rios e represas que compõem a personagem. Começando pelos mais imponentes.
A Barrragem das Três Gargantas no rio Yangtze (o terceiro do mundo após o Amazonas e o Nilo) na província de Ubei, é o segundo maior complexo hidrelétrico do planeta (Itaipu é o primeiro).
Este reservatório de 1.084 km² com capacidade de 18.200 megawatts é a realização de um sonho que durou 80 anos, de Sun Yat-Sen em 1919, Mao Tse-Tung, Teng Xiao-Ping, até o presidente Jiang Zemin decidir a construção em 1992 com 1767 votos a favor, 177 contra e 664 abstenções sem precedentes no Congresso Nacional do Povo (CNP). A controvérsia levantada pelas previsões negativas dividiu o voto, mas o sistema autoritário é que teve voz ativa.
O projeto começou mal. Problemas tecnológicos, praga de corrupção, custos mirabolantes financiados por investidores privados – o Banco Mundial negou crédito logo que viu a longa lista de irregularidades: 13 cidades, 140 cidadezinhas e 1.350 vilarejos inundados, 1.2 milhões de pessoas desalojadas com grande dificuldade de realojamento, 600 km² de florestas e terras agrícolas inundadas, e um impacto ambiental igualmente desmesurado.
Além destas catástrofes inaugurais, hoje constata-se a sedimentação galopante do reservatório, perda de milhares de espécies em vias de extinção, recuo do delta do rio, elevação do sal à superfície e outras ocorrências perigosas. Mas a bem da verdade, o açude passou em um teste (além do fornecimento energético previsto) importante ao resistir estoicamente à enxurrada avassaladora da inundação de maio protegendo muitas vidas.
Em contrapartida, a submersão de centenas de fábricas, minas e descargas de lixo, assim como a proliferação de centros industriais agregados, jogaram no rio a poluição que os cientistas temiam e contaminaram as águas até na superfície, coberta de detritos. Como as consequências são visíveis, até cientistas locais e membros do governo vêm manifestando preocupação com o impacto social e ambiental das Três Gargantas.
A erosão nos reservatórios tem provocado resvalamentos e ameaçado o ecossistema mais rico do leste do mar da China, mas a preocupação maior dos especialistas é que o peso da água provoque também uma indução sísmica – como o terremoto em Sichuan, em 2008, causado pela construção da represa de Zipingpu no planalto tibetano.
Fala-se a meia-voz na Europa que a Barragem das Três Gargantas é um modelo de desastre permanente e evitável, mas ninguém levanta a voz para impedir a China de replicá-lo em casa e fora.
Pequim tem uma cascada de projetos unilaterais de usinas em algumas de suas bacias mais biodiversas e prístinas, como no rio Mekong (que é o segundo do mundo em piscosidade, após o Amazonas) que compartilha com Birmânia, Thailândia, Laos, Cambodia e Vietnã, no rio Nu que compartilha com a Thailândia e a Birmânia e no Yangtze e afluentes próximos da nascente.
Este ano Birmânia, Camboja, Laos, Thailândia e Vietnam sofreram com a maior seca dos últimos 50 anos, que deixou milhões de pessoas sem água. E apesar de estudos científicos mostrarem que ela foi causada por um volume reduzido de chuvas, estes cinco países em reunião em Bangkok para discutir sobre as causas e consequências do desastre, apontaram o gigante de cima. Para eles a China é a culpada e não adiantou nada o representante do CNP negar e levantar o argumento de um simples fenômeno natural.
No final, os Estados afetados lhe solicitaram mais informação, mais cooperação, e mais coordenação nas construções de obras hidráulicas no Mekong. Desde então a China começou uma campanha para tentar mudar a percepção de que seus açudes estão sequestrando água. Ainda não conseguiram convencer ninguém. Continuam tentando e ao mesmo tempo tocando mais de 80 obras hidrelétricas no Mekong e seus afluentes, com a mesma política.
Agora que o gigante asiático aprendeu o milionário caminho das águas, não recusa nenhum contrato. Os Governos e companhias internacionais (inclusive brasileiras) o ajudou a custear e construir a Barragem das Três Gargantas e Xangai aprendeu a lição direitinho. O país não para de oferecer seus préstimos alhures sem nenhuma preocupação com o impacto social ou ambiental dos projetos. Seus bancos e empresas estão envolvidos na construção de 257 barragens em 59 países africanos e do sudeste asiático. Incluindo os projetos polêmicos de Kamchay, no Camboja, de Mphanda Nkuwa, em Moçambique e Merowe, no Sudão (com o qual, além de tecnologia, o gigante asiático coopera com soldados e armas para o Darfur).
Nada freia sua capitalização das riquezas planetárias, mesmo sabendo que em vários casos há melhores soluções do que desapropriar, inundar cidades e revolucionar o ecossistema.
Irrelevam a Comissão Mundial de Barragens (World Comission on Dams, WCD www.dams.org/) criada pelo Banco Mundial e o IUNC (International Union for Conservation of Nature http://www.iucn.org/) para estudar durante dois anos todos os aspectos da questão hidrelétrica e hidráulica (mil projetos em 79 países).
“Embora as barragens contribuam para o desenvolvimento humano, em demasiados casos o preço para garantir lucros têm sido altos demais para as populações desalojadas, para os cidadãos que as custeiam e para o meio-ambiente.” Foi o veredito final da WCD.
A estatística mostra que a construção das usinas ativas no mundo desapropriaram entre 40 a 80 milhões de pessoas e muitas destas nunca recuperaram uma moradia comparável ou aceitável. E em inúmeros casos as usinas levaram a perdas irreversíveis de espécies, ecossistemas, e os esforços para amenizar estes impactos têm sido infrutíferos.
Para prevenir o irremediável a WCD apresentou ideias inovadoras para a planificação de barragens e normas que sugerem a avaliação dos direitos e dos riscos de todas as partes interessadas antes de iniciar uma obra hídrica. A Comissão estabeleceu sete prioridades estratégicas e 26 guias de ação durante cinco etapas importantes do processo decisório de construção. Várias instituições internacionais ratificaram estas recomendações. O Banco Mundial e outros investidores internacionais as seguem à risca. Daí terem se retirado das obras de Iluli na Turquia.
A China parece não ter lido nem a primeira linha. As empresas brasileiras especializadas já devem ter cópia e espera-se que pesem os danos ecológicos, os prejuízos humanos e insistam na aplicação das diretivas da WCD antes de embarcarem em obras hidrelétricas na nossa América e pelo mundo afora.
A minha amiga versada em ecologia de campo e de estudo, leu todas as regras e apresentou três propostas que para um leigo parecem óbvias: Construir açudes em menor quantidade e de melhor qualidade; focalizar recursos em melhores soluções de desenvolvimento; derrubar barragens que estejam causando danos irremediáveis.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

As águas que rolam no Oriente Médio

Oriente Médio normalmente rima com conflito e com petróleo, gás, oleodutos, gasodutos, e outros derivados que fazem a fortuna dos sheiks e das indústrias correlacionadas. A água só preocupa os cidadãos a quem ela falta no dia a dia e aos governos que têm de administrar os magros recursos que a natureza lhes confia.
Na geopolítica hídrica, o Oriente Médio vai do Mar Negro ao Canal de Suez e engloba Iraque, Turquia, Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina. Estes países compartilham mais ou menos as mesmas bacias e o mesmo clima, com precipitações anuais relativamente baixas – entre 700 a 100mm das planícies litorâneas a regiões desérticas da Síria e do Iraque e 1 a 3m nas montanhas da Turquia (Taurus), Síria (Djebel Ansariyya), nos montes do Líbano, no Golan e na Alta Galiléia.
A grande privilegiada é a Turquia, país-ponte entre Europa e Ásia que abriga uma Bacia imprescindível aos vizinhos. Os rios Tigre e Eufrates nascem em suas terras, seguem para a Síria e atravessam o Iraque onde as águas de um e outro se encontram e correm para o Golfo Pérsico. Lá formam o estuário Chatt al-Arab que constitue um ecosistema precioso no mundo árabe.
O débito médio do Tigre é mais elevado do que do Eufrates (1.400 metros cúbicos por segundo contra 840) por causa da água que recebe dos montes Zagros (a maior cordilheira do Iraque e a segunda do Irã), dos afluentes Grande Zab que nasce na Turquia e o Pequeno Zab que nasce no Irã. Apesar disto, é o Eufrates que é mais explorado e por isto a diferença do débito dos dois rios tende a aumentar, pelo menos até os projetos de desvio de água de um para o outro se concretizarem.
O Eufrates tem 2.330 km de extensão (455 na Turquia, 675 na Síria, 1.200 no Iraque) e o Tigre 1.850 km (400 na Turquia, 32 na Síria e 1.418 no Iraque). Para um sul-americano e um brasileiro cujos rios Paraná tem 3.160 e apenas o Araguaia, Tocantins e São Francisco alinhados abrangem 8.420 km, estas dimensões podem parecer acanhadas. E são, para o número de pessoas que deles dependem e para quem o Chatt al-Arab representa uma riqueza maior do que todos os poços de petróleo acumulados.
A bacia do Eufrates cobre 440.000 km² nos três países citados e na Arábia Saudita. A do Tigre, 375.000 km² dos quais um terço se encontra no Irã. Estes primos distantes ou irmãos (varia com as circunstâncias) jamais brigaram por petróleo. Pela água, vivem em tensão. E a Turquia é a prima rica da família hídrica da região.
A Síria dispõe de 15 bilhões de metros cúbicos renováveis, o que per capita, por ano, corresponde a 947 metros cúbicos. Seu volume de chuvas está por volta de 318mm, o que é baixo. O país só tem autonomia de 7km cúbicos o que o leva a uma dependência externa bastante elevada. Entre outros, 50% de sua reserva depende do Eufrates que vem da Turquia, 20% do Oronto libanês e 2% do Yarmuk da Jordânia, e a demanda está aumentando com o crescimento da população.
Em comparação com a Síria, o Iraque é teoricamente opulento com seus 106 bilhões de metros cúbicos – 30 do Eufrates e 50 do Tigre. Mas proporcionalmente é pobre, já que 40% de seu território é desértico e que o volume de chuvas, concentradas no mesmo período brasileiro de dezembro a fevereiro, é fraco. Os iraquianos já usam 93% das terras cultiváveis, que constituem 26% de sua superfície global e devido à salinidade elevada da água, somando todas as safras, dos 8 milhões de hectares apenas três a cinco são realmente produtivos.
Nunca houve no Iraque uma política hídrica – exceto o canal de drenagem de 512 km, construído em 1992 para encaminhar água salgada para o golfo. Todos os regimes se concentraram na produção e exploração do petróleo que é a riqueza nacional e representa 95% das exportações. A indústria agrícola ocupa o segundo lugar, mas com o bloqueio que durou da Guerra do Golfo em 1991 à ocupação do país em 2003, ela representa apenas 8% do PIB.
Na época da invasão, 60% da população iraquiana estava desempregada e dependente da distribuição pública de alimentos. Com o desmembramento do Estado, a situação ficou ainda mais grave. Hoje, a reconstrução do Iraque depende essencialmente de educação, de água e de benefiamentos como eletricidade, irrigação, sistema de drenagem, saneamento, encanamento, etc. A água que existe não está sendo nem distribuída e nem é potável – a não ser na Green Zone de Bagdá, onde os ocidentais estão instalados. Apesar do petróleo, nos últimos anos o país contraiu uma dívida de 120 bilhões de dólares para sobreviver e pagar obras, sobretudo das infra-estruturas bombardeadas.
Na Turquia, nos lugares em que tem água à vontade, o governo, com segundas intenções, vem desenvolvendo projetos de exportação para Chipre e Israel – para este último, suspensas até segunda ordem por causa do ataque da Flotilha de ajuda humanitária à Faixa de Gaza e ao assassinato dos 9 turcos durante a operação militar.
Mas em certas regiões também há penúria, como no Brasil, devida à desigualdade de volume e assiduidade de precipitações atmosféricas. E o país tem dificuldades com o aprovisionamento em certas áreas agrícolas e nas grandes cidades como Istambul e a capital Ankara, onde a seca de 2006/07 exigiu cortes no fornecimento de água.
Para resolver o problema interno, a Turquia lançou em 1977 uma obra hidráulica gigantesca na Anatólia do Sul, GAP (Great Anatolia Project, em homenagem ao criador do Estado). Este é composto de 22 açudes, 19 centrais elétricas e dois túneis para transporte de água para uma extensão que cobre 10% do território turco que concentra 9,5% da população.
O açude Atatürk no Eufrates (169 metros de altura e 1,8 quilômetros de comprimento), finalizado em 1990, é o ponto central do projeto. Segundo Ankara, os 32 bilhões de dólares investidos serão recompensados com segurança alimentar, energia elétrica da zona e aumento de 12% do PIB. Em contrapartida, o solo se empobrece a olhos vistos e a poluição aguda de nitratos e fosfatos usados nas plantações é bastante elevada.
Fortuna de uns, infortúnio de outros.
As consequências arqueológicas (destruição de sítios preciosos como Halfeti e Zeugma), humanas (imersão de vários povoados) e ambientais têm sido incalculáveis. Um dos projetos mais controvertidos foi o de Ilisu, no Tigre, cujo volume de estragos – desapropriação de 55.000 pessoas e submersão de 300 km² de terras com vários sítios mesopotâmicos como o de Hasankeyf, que resguarda ruínas trogloditas, romanas e medievais – provocou tamanha polêmica nacional e internacional que no ano passado os investidores alemães, austríacos e suissos acabaram se retirando porque a Turquia desrespeitava os 153 critérios sociais, econômicos, culturais e ambientais fixados pelo Banco Mundial.
Mas não se pôs um ponto final. Os Bárbaros do século XXI, como a China já vem sendo chamada, se prontificaram para susbtituí-los na mesma hora. E la nave va... já dizia o poeta cinematográfico.

É claro que os sírios e os iraquianos se sentem lesados com as represas que amputam o Tigre e o Eufrates de quase um quarto de seu débito de água.
É claro que se rebelaram com a apropriação turca do manancial hídrico comum.
E é compreensível que se fale em um possível conflito entre Turquia e Síria em torno disto.
Mas é difícil para Ankara arriscar a inimizade dos vizinhos com os quais mantém relações cordiais e a quem é ligada, desde a década de 70, por um acordo tácito que vem respeitando, apesar do GAP.
A prova disto é que durante a Guerra do Golfo em 1991, quando os EUA e seus aliados pediram que bloqueasse a água do Eufrates em direção ao Iraque, a resposta da Turquia, membro da OTAN, foi clara: Podem usar nosso espaço aéreo e nossas bases militares para bombardearem o Iraque, mas nós não lhes cortaremos a água.
O fato é que o maior escudo para os países que exploram recursos hídricos próprios ou alheios é o das forças armadas e das vias diplomáticas.
Nesta ordem exata.
No contexto atual, nem a Síria nem o Iraque têm meios de enfrentar a Turquia. Sabem que o combate é desigual. Mas caso Ankara prossiga a mesma política de expansão hidráulica, estima-se que entre 2020 e 2030 não sobre mais água do Tigre e do Eufrates para os demais países meridionais. Aí é possível que o instinto de sobrevivência faça que reajam.
Por enquanto, bem que mal, a prima rica tem conseguido resolver a questão sozinha, de maneira amigável. Muito por não querer indispor-se com Paris, Berlin, Roma, etc. e tal. Um país que já tem o peso de um passado genocida do qual não se redime (massacre de 1,2 milhões de armênios, 1915/16) e que pleiteia assiduamente a integração na União Européia, sabe que precisa do apoio da opinião pública dos países que a criaram. Sabe também que atingindo seu objetivo terá de submeter-se à política e à ética desta Comunidade. Enquanto isto, com a cumplicidade da China, o desvario segue.


Lista de produtos das colônias a serem boicotados:
http://peacenow.org.il/eng/content/boycott-list-products-settlements;
Free Gaza Movement: http://www.freegaza.org/;
Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/


sábado, 7 de agosto de 2010

A água e a invasão bárbara no Aral



Se a história servisse de lição, a exploração bulímica dos Grandes Lagos na América do Norte seria evitada com o exemplo do mar de Aral, que separa o sul do Casaquistão do norte do Uzbequistão.
O nome mar de Aral poderia ser traduzido como Mar das Ilhas, devido às centenas de ilhotas que o vestem, ou vestiam, como um tecido de bolinhas. Ele era alimentado pelos rios Amu Daria (chamado Oxus na Grécia antiga, ele separou os impérios de Ghengis Khan e de Alexandre) e o Syr Daria (onde, em 329 AC Alexandre teria construído a cidade de Alexandria Eschate), que nascem na Cordilheira do Pamir, no Tajistão.
As chuvas na região são raras (20cm por ano), o clima é seco e até 1960, a população local vivia da pesca e da cultura do cannabis sativa, planta nativa com baixo teor psicotrópico, cujas folhas, ricas em fibra, eram usadas tradicionalemente na confecção de tecido, cordagem, construção e alimentação das ovelhas e dos karakuls (raça de ovinos com pelos mais fartos).
O mar Aral era o quarto mar interno do mundo, com uma superfície de 66.900 km² (uma Bélgica). A região em que ele se situa formava um ecosistema de grande biodiversidade. No início da década de 80, fiquei impressionada com a beleza do lugar, embora já desse para sentir uma deterioração e as margens já estarem bem recuadas. Aziz, um filho de pescador reconvertido em cultivador de cannabis sativa, contou, com olhos sonhadores, que quando era menino o mar era cheio de peixe, gente, navios, que era um espetáculo de verde, que tinha água a perder de vista.
Tentei imaginar, e tirando os navios, pensei no nosso Pantanal e em como seria se o esvaziássemos noite e dia... Nem pensar! Retornei à região 10 anos mais tarde e o que vi foi uma natureza devastada, sal enlameado, enfermidades e fome generalizada. O Aziz parecia 30 anos mais velho do que os 10 anos que nos separavam, dois dos 5 filhos estavam enterrados – um morto de tuberculose o outro de anemia, e o sexto, de dois anos, tinha nascido deformado. Alguns meses atrás, a família já não estava. Os sobreviventes haviam migrado para outras paragens, tinha sal por todos os lados e a paisagem desértica deixou meu coração apertado.
Como é que em 40 anos uma região passa da opulência à miséria total? Como um mar perde a metade de sua superfície e três quartos do volume de água?
O paradoxo está justamente na fartura deste mar. No fim da década de 50 a água parecia inesgotável aos chefes supremos da então União Soviética – cujas 15 Repúblicas incluiam os dois países citados acima. Foi quando nasceu o programa “conquista das terras virgens” que foi o certificado de morte da Bacia (e de outros lugares).
Nos 40 anos seguintes, os canais construídos tiraram 60% do débito dos dois rios que a alimentavam para irrigar sete milhões de hectares (1.446.200 alqueires goianos) de algodão (a quarta produção mundial). E o preço foi o Aral, que passou gradualmente de 55 milhões de metros cúbicos anuais em 1960 aos 7 milhões atuais. De repente, o imenso mar virou dois desiguais: o Mar Pequeno ao norte e ao sul o Mar Grande. A salinidade crescente das águas (de 10 gramas por litro em 1960 a 120, no Grande) provocou a extinção das vinte espécies de peixes nativos e já em 1980, já não havia mais atividade aquática.
Hoje, em vez da imensidão das águas e a alegria que este ex-pescador e ex-camponês conheceu na infância é sal, deserto, carcaças e alguns ratos e camelos desgarrados.
O Mar Grande está condenado ou definitivamente reduzido. A água se foi e deixou um grave problema sanitário por causa do abuso de pesticidas e adubos químicos. A concentração de produtos tóxicos nos alimentos, a água insalubre, os ventos que disseminam em quilômetros a areia contaminada, levaram à família do Aziz e a 63% dos adultos e 60% das crianças da região, patologias respiratórias, digestivas e renais, quando não nascem deformados.
Mas talvez os males dessa gente não venham só da exploração selvagem da água. Há algo ainda mais perigoso enterrado em uma de suas ilhas, ironicamente chamada “Ressurreição”, situada na fronteira entre os dois países. Ela abrigou, no época soviética, um laboratório secreto de armas bacteriológicas que testava e estocava células patógenas como o antrax, a peste bubônica, o tifo e a varíola. Tudo isto, segundo o Kremlin, devidamente enterrado e a ilha descontaminada.
Por garantia ou por razões desconhecidas, em 2001 o Uzbequistão assinou um acordo com os EUA para a limpeza da ilha. Não se sabe como esta está sendo realizada porque desde então o acesso à Ressurreição é restrito.
Mas isto é no Mar Grande, diante do qual, o sonho de uma possível reunião de águas com o Pequeno parece improvável e impossível.
Mas no Pequeno, com verba, determinação e perseverança, parece haver esperança e ela tem a cara do Banco Mundial e do governo do Casaquistão. Juntos, financiaram o Kokaral, um açude de 13 quilômetros no Mar Pequeno. Este permitiu a recuperação de 50% da superfície perdida e uma segunda represa em construção no Syl Daria pretende reconquistar mais quatro metros em 2011.
Nas cidadezinhas vizinhas sente-se um retorno à vida. Carpas reaparecem nas águas e os meninos reaprendem a pescar. Mas o verde só vai chegar com o reflorestamento. Uns arbustos chamados saxaul, cujas raízes buscam água em profundidade. Depois é contar com a reciprocidade da natureza para amenizar o frio. Com o desaparecimento do mar, a temperatura no inverno desce a 45° negativos e no verão atinge 50°.
Uma amiga, militante ecologista com certa influência em instâncias internacionais, sonha em levar um dos espoliadores da bacia dos Grandes Lagos ao deserto salgado do Grande, ex Mar, ex Aral. Talvez consiga. Eu lhe disse que se este visitante potencial estivesse em Moscou ou nas imediações nas três últimas semanas, intoxicado pela fumaça dos incêndios imprecedentes que desfalcaram a Rússia e o mundo de quilômetros de árvores (estima-se 100 anos para a reposição das florestas queimadas), em consequência das mudanças climáticas e as negligências ecológicas que as causam, pode ser que ele despertasse para o perigo.
Ao que ela respondeu que, infelizmente, nada e ninguém garante que mesmo que este jovem executivo vá ao Aral via Moscou sobrevoando a imensa zona calcinada, em um ou outro lugar ou em ambos, o que a nossos olhos é devastação nos dele não pareça apenas oportunidade.
Mas quem tem olhos e não é cego, olhando, pode ver e enxergar.

A desertificação do Aral em data e imagem


Documentário Al Jazeera: People of the lake

Água, da riqueza à devastação


Há pouco ouvi um especialista repetir que se toda a água da Terra fosse posta em um balde, a potável encheria uma colherzinha de café. Pois é. Como aprendemos na escola, a água cobre 71% da superfície da Terra, mas a percentagem de água doce é de apenas 3%, dos quais 2/3 são concentrados nos polos sob forma de gelo e do terço que sobra, 98% são aquíferos subterrâneos e só 2% são em forma de rios e lagos. Destes 2%, estima-se que 12% se encontram em território nacional.
O que dá ao Brasil e aos brasileiros uma grande vantagem e uma enorme responsabildiade.
Como também se aprende na escola, temos duas grandes reservas; a bacia do Amazonas, rio que compartilhamos com o Peru e que, sozinho, é responsável por 18% da água vertida nos oceanos, e o Aquífero do Guarani. Este é o maior manancial de água doce do mundo – ocupa uma área de 1,2 milhões km², dos quais 840 mil estão no Brasil – 2/3 (em Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), 250 mil na Argentina, e no Paraguai e Uruguai, 58.500 cada.
Talvez devido à fartura, o nosso sub-continente sul-americano tenha vivido em paz relativa na partilha dos recursos hídricos. O que não é o caso na história do mundo em que a geopolítica da água tem gerado guerras desde a antiguidade, embora a única que seja historicamente declarada tenha acontecido há 4.450 anos, na antiga Mesopotâmia (sul do Iraque) em que as cidades de Lagash e Umma se confrontaram para obter o controle dos canais de irrigação alimentados pelo rio Tigre.
Desde então, conflitos hídricos se seguiram, mas menos explícitos e em alguns casos dissimulados em controle territorial ou usados como arma e instrumento de chantagem. Como por exemplo, em 596 AC, o rei da Babilônia, Nabucodonosor, após 13 anos de sítio infrutífero da cidade de Tyr, no sul do Líbano, destruiu uma parte do aqueduto que a abastecia para conquistá-la.
Em 1503, durante a luta de Florência contra Pisa, Leonardo da Vinci e Maquiável pensaram em desviar o curso do rio Arno para tirar de Pisa o acesso ao mar. Mas só ficou em palavras.
Em 1938, Tchang Kai-Chek mandou destruir diques do rio Amarelo na China para conter o avanço das tropas japonesas, e até o fim da Segunda Guerra bombardeou vários açudes com o mesmo objetivo.
Em 1948 e em anos seguintes, Israel protagonizou conflitos que lhe valeram, entre outros, o Golan e o controle do rio Jordão, do qual privou a Cisjordânia em toda a sua extensão.
Em 1960, no Vietnam, os Estados Unidos destruíram sistematicamente os diques do país, causando, segundo os norte-vietnamitas, a morte de 2 a 3 milhões de pessoas por afogamento ou fome.
Entre 1980 e 1988 o Iraque e o Irã guerrearam pela posse do Chatt-el-Arab, o estuário do Tigre e do Eufrates.
Em 1991, no processo de invasão, Saddam Hussein destruiu a maioria das usinas de dessalinização do Kuwait.
Em 1999, durante a guerra, os sérvios fecharam o sistema de distribuição de água da capital do Kosovo, Pristina, e contaminaram várias cisternas. E no mesmo ano, uma bomba destruiu a principal rede de água no lago Lusaka, no Zâmbia, privando 3 milhões de pessoas de água.
Em 2003, durante a invasão do Iraque, os Estados Unidos bombardearam ininterruptamente as instalações de saneamento e de abastecimento em água de Bagdá (com consequências ainda nefastas à população da Zona Vermelha da cidade, reservada aos iraquianos).
A lista exaustiva de litígios hídricos é longa e variada, embora no cômputo bélico propriamente dito, só (!) se tenha combatido pela água 37 vezes. Israel protagonizou 27 destes conflitos.
Deixemos o Oriente Médio para mais tarde. O enfoque de hoje são dois outros problemas que estão prestes a provocar catástrofes em duas regiões opostas do planeta: da opulenta à miserável.
Na mais rica, trata-se de um choque eventual entre os Estados Unidos e o Canadá por causa dos Grandes Lagos que os dividem e separam cada vez mais.
Após a Bacia do Guarani, os lagos que os dois compartilham – o Superior ( o maior do mundo), o Michigan, o Huron, o Erie e o Ontário – representam 20% da água doce do planeta e são alvo de cobiça crescente dos EUA. Como Ottawa não consegue fazer Washington assinar e respeitar um contrato que regulamente o usufruto da Bacia, os canadenses temem que a exploração excessiva e intensiva de suas águas pelos americanos venha a expropriá-los de seus recursos hídricos e ao mesmo tempo provocar uma catástrofe ecológica irremediável.
Estima-se que no ritmo em que a água vem sendo extraída, dentro de 25 a 30 anos este aquífero esteja esgotado. E o que apavora os vizinhos é que os EUA, em vez de remediar para tentar preservar os recursos dos lagos, já está pensando em como desviar água do golfo do Mississipi através de rios e riachos em um projeto oneroso e complicado que preocupa ainda mais as ONGs ecológicas. Estas não param de denunciar esta extração abusiva de água e se o problema não for discutido e resolvido em tempo hábil, a insatisfação canadense pode degenerar em uma confrontação séria entre os dois vizinhos “civilizados” que têm todos os meios financeiros e científicos que precisarem para evitar um desastre.
Enquanto isto, no Paquistão as inundações estão tirando do mapa dezenas de cidadezinhas e deixando atrás de si água contaminada e todas as doenças inerentes à insalubridade; e no Bangladesh, um dos Estados mais pobres e mais expostos ao aquecimento planetário, estima-se que os 140 milhões de habitantes que se apertavam em 143.998 km² tenham perdido nos últimos anos 10% deste território exíguo. Não por litígio fronteiriço, mas por causa do aquecimento global que provocou nos últimos anos uma elevação de 45cm do nível do mar. Ao contrário do desprevenido Paquistão, inundação no Bangladesh é normal. 9,6% de sua superfície é coberta de centenas de riachos e de três grandes rios: o Gange, o Meghna e o Brahmaputre. O país recebe 90% de água proveniente do Tibete, do Butão, da Índia e do Nepal. É uma enxurrada de chuvas que inunda sistematicamente pelo menos um terço do território.
Embora os habitantes tenham aprendido a conviver com os caprichos da natureza, as mudanças climáticas dificultam bastante o esquema há anos ensaiado. O aumento do período de chuvas somado ao derretimento dos glaciais do Himalaia e à elevação do mar, têm tornado a evacuação da água cada vez mais difícil e improvável. E a tendência é piorar. O que se vê hoje no Bangladesh é uma população majoritariamente rural em ruptura com a natureza caprichosa que a obriga a migrar em massa para regiões supostamente calmas.
Até o século passado havia no mundo dois tipos de refugiados: econômicos e políticos. Os problemas de água no Bangladesh inauguraram um terceiro que tende a se banalizar como os demais: os refugiados climáticos. A água invade o país quase todo, se transforma em lama, há escassez de água potável e busca-se refúgio em Dacca, a capital, que não suporta o afluxo e que também corre risco de inundações de grande amplitude, como a de 2004.
E em meio a esta catástrofe climática, aparece uma ameaça política grave para o governo democrático: a miséria e as más perspectivas estão transformando o país em um canteiro de ideias extremistas. Dizem os homens que em vários madraçais (escolas) religiosos já se vê foto de Ben Laden. http://dai.ly/9lqr3z



domingo, 1 de agosto de 2010

Água não-potável : arma de destruição em massa

O que no planeta terra mata mais do que o câncer e do que a guerra?
Água não-potável é a resposta certa.
Uma realidade dramática que os militantes humanitários e os correspondentes de guerra conhecem há décadas de cor e decorado.
É por isto que ontem, em um jantar parisiense regado a bons vinhos e águas minerais mais caras do que a abertura de uma cisterna em terra árida, o assunto inverso veio à tona (graças à campanha “Mensageiros da Água” da Danielle Mitterrand e da garrafa “Folha d’água” criada pelo Philippe Stark – objeto de moda indispensável?) e me perguntaram: O que é água potável?
Se todos conhecessem o Gonzaguinha, teria dito primeiro É a vida e é a vida! Mas em vez de lirismo veio uma frase óbvia seríssima: é uma água que se pode tomar sem risco para a saúde.
Depois desembrulhei que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece normas que fixam os limites das substâncias nocivas que ajam em nosso organismo como age uma erva daninha e que uma água dita potável não é isenta de matérias poluentes, embora nela a concentração destas matérias seja aquém da quantidade de risco.
Uma água potável tem de ser livre de germes patogênicos (bactérias e vírus), de organismos parasitas e tem de limitar certas substâncias químicas tóxicas como nitratos e fosfatos, metais pesados, pesticidas (como no link-vídeo do artigo anterior) para os quais foram definidas quantidades admissíveis. Por outro lado, ela precisa de oligo-elementos indispensáveis ao organismo, tem de ser clara, não ter cheiro e ter um gosto agradável. É por isto que contém um pouquinho de sais minerais (de 0,1 a 0,5 gramas por litro) indispensáveis ao organismo. Concluindo, ela não pode corroer o encanamento a fim de chegar limpa à torneira, que nós privilegiados abrimos várias vezes ao dia sem pensar de onde sai a água e do valor da mesma.
É claro que este esclarecimento exaustivo só se aplica aos países e a regiões que dispõem de recursos hídricos, dos conhecimentos científicos, das técnicas e dos meios necessários ao controle dos riscos sanitários e da análise química. O Brasil tem todas estas vantagens.
Mas no mundo, hoje, 900 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e 2.5 bilhões não têm acesso a saneamento básico. E estima-se que a água não-potável cause entre 8 a 3,6 milhões de vítimas, dentre as quais, 3 milhões de menores de 15 anos, e dentre estes, 1,5 milhões de crianças que morrem anualmente de doenças diarréicas.
Portanto a água não-potável é o maior assassino em série e em massa da atualidade. E ao contrário do câncer e da AIDS que necessitam tratamentos pesados, dispendiosos e de pesquisas médicas constantes, o remédio à mortalidade causada pela água insalubre é simples e claro: basta levar ao cidadão água potável, saneamento, e higiene básica: imagine você que há 3 milhões de pessoas que não têm uma única daquelas torneiras que temos em casa...
O objetivo do Milênio da Organização das Nações Unidas (ONU) é reduzir a pobreza mundial à metade até 2015, sobretudo na África. A ajuda pública internacional para a água gira em torno de 6,4 bilhões de dólares, metade em doações e a outra em empréstimos. Contudo necessita-se de 4 bilhões anuais complementares para a meta ser alcançada. Como diz a Danielle Mitterrand, muito fácil de alcançar já que os meios existem: em 2009 só os Estados Unidos gastaram 7,3 bilhões de dólares por mês na ocupação do Iraque.
Parêntese arma: Considerando que o Iraque tem 31.2 milhões de habitantes, excluindo os 112 mil soldados americanos (em baixa?) e os 120 mil mercenários (em alta?) presentes e os 2.7 milhões de refugiados ausentes, hipoteticamente, o prêmio anual da cabeça de um iraquiano é de US$2.81 milhões de dólares.
Parêntese água: Como o pragmatismo da real-política é implacável, 16 países pobres, dentre eles o Burundi e o Tchad, receberam, no mesmo ano, menos de meio dólar por habitante para água e saneamento básico.
Sem comentário.
Só que a urgência da água potável é máxima. Sobretudo devido às mudanças climáticas que vêm afetando recursos hídricos nos quatro cantos do mundo e agravando a marginalidade.
Poderia dar vários exemplos geopolíticos, mas veja só o Quênia, em que em 2009 as chuvas diminuíram em 80% provocando a queda de dois terços das colheitas e a morte de 100 mil cabeças de gado. Este país tem 36 milhões de habitantes. 16,8 milhões não têm acesso a água e 22,6 milhões não dispõem de saneamento básico.
É óbvio que não adianta dar dinheiro sem fornecer educação e sem ensinar a abrir o poço e instalar o encanamento necessário junto com quem vai ser beneficiado – O porco só engorda com o olho do dono, diz o ditado popular. Caso contrário os escassos euros e dólares podem ser desviados para o bolso de mais um traficante de armas – uma praga que avassala esta (como outras regiões da África) por causa da ingovernabilidade da Somália.
Aliás, abro um segundo parêntese armas: Bombardear e ocupar o Afeganistão para assegurar o aprovisionamento de petróleo de aliados de agora, e bombardear e ocupar o Iraque para o controle das águas do Tigre e do Eufrates, são mais importantes (a curto prazo, sempre a miopia do curto prazo) do que tentar resolver os graves problemas de lugares como a Somália, onde grupos rebeldes desarmam os soldados e se armam, praticam a pirataria como quem vai às compras armado, pilham, sequestram, assassinam e causam imensos prejuízos comerciais no Golfo de Aden, no mar da Arábia e no oceano Índico. Sem contar as agressões bélicas crescentes aos vizinhos e os atentados aos postos de saneamento de Mogadíscio, sua própria capital.
E a água potável nesse último parágrafo? Justamente, a água é o princípio e o fim de tudo. Na Somália e alhures, onde, além ou em vez de alimento básico, é usada como arma líquida de tortura e chantagem.
Enquanto isto, nós brasileiros que beneficiamos de um estado de direito em uma democracia pacífica desde 1984, da maior reserva hídrica do planeta, continuamos a tomar banhos demorados, a deixar torneira aberta, a poluir nossa água tão invejada... sabendo que no nosso próprio sertão falta água.
A água é patrimônio universal. Responsabilidade e direito de todos os cidadãos do planeta.